Eça está sempre na moda

"Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes. Com uma política de acaso, com uma literatura de retórica e de cópia, com uma legislação desorganizada, não se pode deixar de ter uma moralidade decadente. Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taverna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficamos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, carrascos, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe média inteira, que vive dele, de chapéu alto e paletó.
Este caldo é o Estado. A classe média vive do Estado. A velhice conta com ele como condição da sua vida. Logo desde os primeiros exames do liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia da sua tranquilidade. (...) A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres, e das casas arruinadas; é a ocupação natural das medriocridades; é o usufruto da burguesia. Ora como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade."

José Maria de Eça de Queirós
in "As Farpas", Maio de 1871.

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