Houellebecq vintage

"O desejo sexual incide essencialmente sobre os corpos jovens, e o investimento progressivo do campo da sedução pelas raparigas muito jovens não foi no fundo mais do que um regresso à normalidade, um regresso à verdade do desejo análogo a esse regresso à verdade dos preços que se segue depois a um sobreaquecimento bolsista anormal. O que não impede que as mulheres que tinham tido vinte anos por volta dos "anos de 68" se tenham encontrado, quando chegaram à casa dos quarenta, numa situação ingrata. Geralmente divorciadas, pouco podiam contar com essa conjugalidade — calorosa ou abjecta — cujo desaparecimento tinham feito tudo para acelerar. Fazendo parte de uma geração que — sendo a primeira a fazê-lo num tal grau — proclamara a superioridade da juventude sobre a idade madura, não podiam surpreender-se demasiado por se verem por seu turno desprezadas pela geração chamada a substituí-las. Finalmente, o culto do corpo que tinham poderosamente contribuído para constituir não podia senão levá-las, à medida que as suas carnes se iam tornando flácidas, a experimentar por si próprias uma repulsa cada vez mais viva — repulsa de resto análoga à que podiam ler no olhar de outrem."
Michel Houellebecq
in As Partículas Elementares, Relógio d'Água Editores.

Discos de 2015

em tempos mencionei a minha simpatia por listas. Especialmente listas de discos, que costumo fazer todos os anos no final de Dezembro. Ligeiramente para além do prazo, deixo aqui a minha lista dos melhores discos de 2015:

  • Viet Cong – «Viet Cong»
  • Foals – «What Went Down»
  • Jamie xx – «In Colour»
  • Equations – «Hightower»
  • HEALTH – «Death Magic»
  • Moullinex – «Elsewhere»
  • Mikal Cronin – «MCIII»
  • PISTA – «Bamboleio»
  • Natalie Prass – «Natalie Prass»
  • Tame Impala – «Currents»

Bandeiras negras

Acompanho a guerra civil da Síria desde as primeiras manifestações contra Assad e desde cedo começaram a surgir notícias, entre a fragmentação de milícias que combatiam o regime de Damasco, de um grupo de bandeiras negras, combatentes aguerridos e métodos brutais. Na altura, os norte-americanos liderados pelo Prémio Nobel da Paz apoiavam a insurreição com instrução e armamento, enquanto na Europa os políticos e a imprensa queimavam todas pontes com o acossado regime de Assad, na ingénua esperança de uma mudança geopolítica favorável aos interesses ocidentais, ignorando uma longa lista de falhanços semelhantes na qual a Líbia era o exemplo mais recente. Enquanto isso, para quem acompanhava as notícias da Síria com mais atenção, era óbvio que uma grave ameaça estava a germinar no território. Maior que o regime de Assad, que apesar de todos os abusos e restrições à liberdade geria um país em que as instituições funcionavam e que em termos internacionais já não representava qualquer ameaça. O grupo das bandeiras negras, alimentado do ressentimento sunita e do caos no Iraque e na Síria, utilizando armas e equipamento de fabrico americano saqueados dos paióis do exército iraquiano ou pilhados a outras milícias rebeldes, ganhava terreno em todas as frentes, assimilando ou eliminando os grupos concorrentes, até se tornar o grande actor regional que é hoje.

O Estado Islâmico tornou-se o epicentro de todas as discussões. Não alinho em teorias da conspiração, mas a verdade é que a acção do Ocidente, mesmo que involuntária e indirecta, contribuiu de forma decisiva para a sua afirmação.

Os elefantes na sala

Depois dos acontecimentos de Paris, é previsível que avancem mais medidas de controlo das comunicações e circulação dos europeus. A internet será mais vigiada, as telecomunicações mais rastreadas, a video-vigilância (ainda) mais omnipresente. Mais controlo, menos liberdade, mas nem por isso mais segurança. Os ataques vão continuar a acontecer, provavelmente com maior frequência. É a resposta possível a um problema cujas causas os políticos europeus insistem em não enfrentar. É impossível negar que os ataques de Paris são uma consequência natural da política de «portas abertas» que há décadas tem sido imposta sem discussão por toda a Europa. Todos aqueles que há anos se opõem à política de imigração maciça são rotulados de «alarmistas» e «extremistas», mas a verdade é que os seus receios se têm concretizado aos olhos de todos. É hora de enfrentar este problema com frontalidade e coragem.

Homeopatia orçamental

Na estreia parlamentar, o deputado eleito pelo PAN defendeu a inclusão das terapias alternativas na oferta do Serviço Nacional de Saúde. O PS, nesse tema, já está muito à frente. Na revisão do programa macroeconómico diluiu mil vezes as medidas de controlo orçamental e prevê o mesmo défice.

Ouvir para esquecer



«Say», Cat Power.

É triste assistir à decadência de um artista. Nunca tive essa experiência de forma tão directa como no concerto de Cat Power por ocasião da edição de 2014 do Super Bock Super Rock. Foi um espectáculo atípico a vários níveis e a culpa não foi apenas de Chan Marshall, cuja atribulada carreira dava para escrever vários livros. Em primeiro lugar, caiu uma inesperada chuvada ao princípio da noite, que obrigou à reformulação do alinhamento do palco secundário. O concerto de Cat Power foi adiado e depois encurtado, também devido às exigências do espectáculo acústico de Eddie Vedder no palco principal.

Chan Marshall lá subiu ao palco com algumas horas de atraso, com um ar pesado e envelhecido, vestindo uma camisa xadrez de flanela sobre uma t-shirt dos Wu-Tang Clan. O que se seguiu foi um espectáculo verdadeiramente deprimente, em que apesar do esforço e boa vontade a artista não conseguiu mais do que parecer uma má imitação de si própria. Perante uma banda competente, que olhava para a cantora com a condescendência de quem já viu demasiado ao longo da tournée, Chan Marshall interpretou meia dúzia de canções com um ar desorientado e uma voz que alternava entre o mau e o irreconhecível. E se nas pausas entre a música a artista entrava em monólogos incompreensíveis, o mais desconcertante estava guardado para o fim. Com o final abrupto do concerto, Chan Marshall decidiu agradecer às primeiras filas do público oferecendo tudo o que tinha à mão: desde setlists e autocolantes promocionais às flores que pouco antes um fã lhe tinha oferecido até, por fim, ao conteúdo da própria carteira.

Quando soube que Cat Power voltaria este ano a Portugal para um concerto no CCB, decidi desde logo ficar em casa. As memórias do concerto do Super Bock ainda me assombram sempre que volto a uma discografia repleta de grandes momentos. Refugiei-me nos discos e não arrisquei outra desilusão.

2015 - 1984 = 51

Primeiro foi o PirateBay. Agora foram 51 sítios que, segundo o IGAC, se dedicavam à «disseminação de links que permitem aceder a vídeos, jogos, revistas ou música piratas». Não está em causa a justiça da medida, embora a sua eficácia seja questionável, já que qualquer pessoa que saiba utilizar o Google consegue facilmente contornar o bloqueio. De qualquer forma, o precedente é perigoso e ameaça a última fronteira da liberdade que é a internet. Em breve, com a banalização do bloqueio de sítios sob pretextos vagos e indefinidos, os alvos podem ser outros e as consequências bem mais graves. Orwell continua actual.

Os diários de Turner



«I Bet You Look Good on the Dancefloor», Arctic Monkeys.

Através de um magnífico artigo do The Guardian, fiquei a saber que já passaram dez anos desde que os Arctic Monkeys lançaram o primeiro single. Os Arctic Monkeys são para mim um caso especial. Comecei a ouvi-los através de umas versões bootleg de qualidade duvidosa sacadas do eMule e desde logo fiquei apanhado por aquela banda de miúdos praticamente da minha idade. A partir daí nunca deixei de os seguir com atenção, de tal forma que aconteceu algo curioso: à medida que a banda de Alex Turner evoluía do rock adolescente dos primórdios, que ilustrava o quotidiano com riffs de guitarra e calão de Sheffield, para uma sonoridade mais densa e mais negra, feita de sombras e ecos perdidos, também o meu gosto musical amadureceu, alargando horizontes num processo de crescimento paralelo. Pelo meio, tornou-se difícil enumerar as músicas que marcaram acontecimentos da minha vida. Hoje em dia, cinco álbuns depois, os Arctic Monkeys ainda são das bandas que mais ouço.