Sem pés nem cabeça


Oliver Stone sempre foi um realizador moralista, no sentido de fazer dos seus filmes autênticas lições para os espectadores. Essa tendência para a pedagogia não o impede de ser um grande realizador, responsável por autênticos clássicos como «JFK» e «Platoon». No entanto, em «Savages», o último filme de Stone, é difícil encontrar alguma ideia, quanto mais lições. Numa aparente mas confusa condenação da War on Drugs, dois traficantes independentes de Laguna Beach — um deles doutorado em Biologia, cheio de boas intenções e muitos projectos para ajudar os pobrezinhos do Terceiro Mundo, e o outro ex-militar das forças especiais endurecido por várias comissões no Afeganistão — partilham uma miúda rica num bizarro triângulo amoroso, e são forçados a fazer frente a um cruel cartel mexicano. O problema é que tudo é feito sem pés na cabeça, numa história que desafia constantemente a lógica e a própria compreensão, com actores em permanente overacting e personagens menos credíveis que vilões de séries televisivas dos anos 80. Tudo embrulhado em filtros à CSI e muita acção literalmente desmiolada. No fim do filme, após um inevitável mas inexplicável happy ending de domingo à tarde, é difícil perceber o que Stone queria fazer com este filme. Ou «Savages» é produto de tarefeiro ou Oliver Stone está definitivamente a perder qualidades.

Há enganos e enganos

É curiosa a cobertura que a imprensa portuguesa deu ao engano do jornal chinês People's Daily, que publicara uma notícia do satírico The Onion nomeando Kim Jong-Un como o "Homem Mais Sexy do Mundo de 2012". Quando uma notícia falsa do satírico Daily Currant publicada na página do suplemento Dinheiro Vivo, do Diário de Notícias e Jornal de Notícias, invadiu as redes sociais dando conta que George W. Bush tinha votado por engano em Barack Obama nas últimas eleições americanas, os jornais portugueses esqueceram-se de apontar e ridicularizar a falha. Ou talvez seja mais fácil fazer pouco dos chineses.

Novembro

Diz-se que a História é escrita pelos vencedores. No caso do 25 de Abril, a narrativa dá pouco espaço a outras interpretações e qualquer discussão resvala invariavelmente para a acusação e o mais básico insulto. É nesse contexto que surge «Novembro», o mais recente livro de Jaime Nogueira Pinto, um romance que tem como pano de fundo o período entre o Verão de 1973 e o 25 de Novembro de 1975. Outro romance sobre o 25 de Abril? Não. Ao contrário de tantos outros livros, «Novembro» foca-se no outro lado da Revolução, constituindo um poderoso retrato de como as direitas viveram o 25 de Abril.

«Novembro» vira o tabuleiro do avesso. Baseado na experiência pessoal de Jaime Nogueira Pinto, o livro acompanha o percurso de diversas personagens à direita do regime através das datas marcantes da Revolução: não só o 25 de Abril mas também as prisões do 28 de Setembro, a intentona/inventona de 11 de Março, o Verão Quente, a independência africana de 11 de Novembro e finalmente o Thermidor de 25 de Novembro. É um livro escrito na perspectiva dos vencidos. Daqueles que sonhavam com um outro Portugal, que procuraram salvar o possível no naufrágio da Descolonização, que foram remetidos ao silêncio e à prisão pela voragem da Revolução. E que depois de tudo foram arrumados nas recônditas gavetas da História. «Os retardadores», como diz Henrique num dos parágrafos-chave desta história, numa expressão que poderia dar o título a este livro. Em paralelo com a acção política, desenvolvem-se três histórias de amor bem distintas, mas que acabam por se entrelaçar bem com o resto da história. Embora seja uma obra de ficção, a narrativa mantém uma forte ligação à realidade. Grande parte dos episódios tiveram realmente lugar, acontecendo o mesmo com a maior parte das personagens, mesmo quando têm outros nomes ou simplesmente não são identificadas.

Trata-se da primeira incursão de Jaime Nogueira Pinto na ficção, mas nem por isso o livro perde brilho. Antes pelo contrário, «Novembro» está muito bem construído e estruturado, com uma escrita fluída e um estilo apaixonado mas sereno. Com diversas camadas de leitura, o livro conta com uma fascinante e complexa galeria de personagens. «Novembro» é uma brilhante história de combate político e de luta pela sobrevivência, de paixões e conspirações, de revoluções sonhadas e impérios desfeitos. Um livro que fazia falta. No meio de tudo, lamenta-se apenas o muro de silêncio com que o lançamento do livro esbarrou, talvez sinal de um país que ainda não superou o fardo de Abril. Ainda assim, não deixa de ser um dos melhores romances publicados em 2012.

Opinião livre

O Público estreou uma nova página na internet. O aspecto gráfico está mais actual e a estrutura mais intuitiva e funcional, mas a principal surpresa é a página permitir a leitura integral da secção de Opinião do jornal. Incluindo as colunas de Vasco Pulido Valente e Miguel Esteves Cardoso. Desconhece-se se é uma medida temporária, se faz parte das funcionalidades da nova página ou se é simplesmente um engano. Seja como for, é de aproveitar. E nada melhor do que começar por ler o elogio de Miguel Esteves Cardoso ao restauro da estátua de D. José I no Terreiro do Paço.

Adenda: Afinal, foi sol de pouca dura. A leitura dos principais colunistas foi restringida aos assinantes do jornal.

Dead Combo



«Esse Olhar Que Era Só Teu», Dead Combo.

O Fado é muito mais do que uma voz lúgubre ou o dedilhar de uma guitarra portuguesa. É um espírito, ultrapassa estilos e géneros, e pode viver nas paragens mais inesperadas. No caso dos Dead Combo é talvez a maior referência, embrenhada numa série de influências aparentemente inconciliáveis, do western-spaghetti ao tango argentino e à morna cabo-verdiana. Conheci-os em 2008, um pouco antes de Lusitânia Playboys. Durante muito tempo, tempo demais, foram um dos segredos mais bem guardados da música portuguesa. Não tão bem guardado quanto isso, porque os concertos iam enchendo, como naquela noite memorável no Tivoli, no Vodafone Mexefest do ano passado, em que a sala abarrotou para ouvir as melodias da dupla, no meio de uma aura enigmática e fantasmagórica. No entanto, a consagração pública só chegou este ano, depois de servirem de banda sonora a No Reservations, acompanhando Anthony Bourdain na descoberta da gastronomia de Lisboa. Como sempre, foi preciso um estrangeiro elogiar uma coisa nossa para repararmos nela. É o nosso fado.

Dia de vitória

Quem ontem atravessasse Lisboa de carro, dificilmente acharia que não se tratava de um dia normal. Comércio a funcionar e um pouco mais de trânsito do que o costume, mas tudo normal. O país esteve muito longe de parar. É o sinal mais evidente de que a Greve Geral — definida como paralisação concertada de actividades a nível nacional — falhou redondamente. Enquanto isso, às portas de São Bento, Arménio Carlos arengava sobre a grande vitória dos trabalhadores numa das «maiores greves gerais realizadas em Portugal». O costume. Seguiu-se o Carnaval habitual, com algumas dezenas de encapuçados a desafiar a polícia. Ao longo das últimas manifestações têm esticado a corda, com os desafios a subirem de tom. Desta vez tiveram finalmente o que queriam. Aos insultos e provocações, aos petardos, garrafas e pedras atirados, a polícia respondeu com a tão ansiada carga. Jornalistas em delírio, perseguição até ao Cais do Sodré, ensaios de barricadas, ecopontos a arder. Nas atitudes também se nota alguma evolução. Parece que os anarquistas deixaram finalmente de choramingar quando são agredidos pela polícia. Quase parece que estamos na Europa. Ao fim do dia, todos ganharam: CGTP, manifestantes, jornalistas. Até a polícia. Quanto ao país, não se sabe. Mas isso também não interessa nada.

Ruínas



«Não Sei Desenhar Barcos», Filho da Mãe.

Há quem o conheça como guitarrista dos If Lucy Fell, banda próxima do pós-hardcore. Mas a solo, Rui Carvalho é Filho da Mãe. E quando se diz a solo, neste caso é mesmo sozinho. Apenas com uma guitarra acústica e uns pedais. A sua arte é fazer a guitarra cantar, sobrepondo sequências, usando e abusando desses loops até parecer estarmos a ouvir quatro ou cinco músicos em conjunto. A alma é portuguesa, com certeza. A melancolia que transparece nas canções às vezes parece nostalgia, outras apenas um desencanto descomprometido. Um pouco como o país, um pouco como o poema de Pessoa que dá título a este blogue.

Até ao Fim

«Até ao Fim : Destruição e Derrota da Alemanha de Hitler 1944-1945» é a última obra de Ian Kershaw, historiador britânico celebrizado pela biografia Adolf Hitler. Como um dos maiores especialistas na história do III Reich, Kershaw apontou neste livro à eterna questão de todos os que estudam a II Guerra Mundial: como é que a Alemanha manteve a sua coesão e aparente organização ao longo do último ano do conflito, e especialmente nos derradeiros dias com grande parte do território sob ocupação e os russos às portas da chancelaria em Berlim? Não é só a tenacidade da resistência militar alemã perante a esmagadora superioridade dos Aliados que surpreende. A manutenção da normalidade no funcionamento das instituições, mesmo sob terríveis bombardeamentos e o avanço constante do inimigo, é ao mesmo tempo assustadora e admirável. Não houve colapso até ao fim e Kershaw propõe diversas explicações. Se por um lado a imposição dos Aliados de uma "rendição total e incondicional" excluiu à partida qualquer tentativa de negociação e reforçou a radicalização do regime, por outro a existência de diversos poderes abaixo do Führer que competiam e se sobrepunham entre si (o Estado, o Partido, os Gauleiter, a Wehrmacht, as SS) criava um sistema com diversos graus de redundância. A esse nível, o exemplo da reacção alemã ao bombardeamento de Dresden em Fevereiro de 1945, já nos meses finais do conflito, descrito por Kershaw, é paradigmático:
"Mesmo nesta fase tardia da guerra e no caos da cidade em ruínas, o regime demonstrou uma capacidade notável para improvisar uma resposta de emergência. Foram enviadas equipas de assistência para Dresden na manhã a seguir ao ataque. Dois mil soldados e mil prisioneiros de guerra, juntamente com equipas de reparações de outras cidades da região, foram enviados de imediato. Criou-se um posto de comando e um sistema de comunicações para coordenar o trabalho. Três dias depois, estavam já a ser distribuídas seiscentas mil refeições quentes por dia. Foi declarada a lei marcial e os saqueadores detidos e, em muitos casos, executados sem demora. A terrível tarefa de recolher os cadáveres carbonizados começou, em parte, a cargo de prisioneiros de guerra. Com precisão burocrática, as autoridades da cidade recolheram e contaram os cadáveres. Mais de dez mil foram sepultados em valas comuns e nos arredores da cidade".
Embora a sua escrita seja fluída e cativante, Kershaw não resiste a um certo pendor ideológico, recorrente em obras deste género. Seja classificando os sabotadores do esforço de guerra alemão como "corajosos" para pouco depois apontar a "lógica perversa" dos generais que cumpriam as ordens militares de Hitler, seja acusando os líderes menos comprometidos com o regime (como Speer) de terem-se empenhado para prolongar ao máximo a capacidade industrial e militar do país, como se não fosse esse o seu dever. Ainda assim, este livro reflecte um monumental trabalho de pesquisa, com inúmeras referências a diários, correspondência e relatórios, que dão uma imagem vívida do complexo mosaico que era a sociedade alemã durante a guerra. Lamenta-se apenas a ausência de quaisquer referências às acções ou registos de voluntários estrangeiros que lutaram sob a bandeira do Alemanha nacional-socialista (recorde-se que 368 000 voluntários estrangeiros combateram pelas Waffen-SS, sem contar com os estrangeiros colocados no Exército regular como os espanhóis da Divisão Azul, um número impressionante quando comparado aos 35 000 das Brigadas Internacionais da Guerra Civil de Espanha).
Há quem diga que já tudo foi escrito sobre o III Reich. Este livro, com as suas mais-valias e defeitos, confirma que a distância temporal é fundamental para retratar esta época da História sem preconceitos e desvios ideológicos.

América

Nos Estados Unidos da América, hoje é dia de eleições. Um tema fascinante que assegura horas e horas de análise e discussão, tal é a complexidade do processo eleitoral e o número de variáveis em causa. Ainda para mais numa eleição que se prevê a mais renhidas das últimas décadas. E em Portugal? Por cá o tema é tratado com a simplicidade habitual. Obama é fixe, é justo, diz coisas bonitas e bebe cerveja com os seus apoiantes. É o candidato do "Hope" e do "Change", vai aos late nights da moda, é apoiado pelos actores, pelos artistas e pelos pobrezinhos. Já Romney é mórmon, é milionário e não percebe porque é que os vidros dos aviões não abrem. É um palhaço e um ignorante. E é milionário. É apoiado pelos ricos, pelos racistas, pelo Tea Party, pelo Tea Party, pelo Tea Party, pelo Ku Klux Klan e pelos fundamentalistas religiosos. E ainda assim a eleição está renhida, com as sondagens a 50-50. Estes americanos são loucos. É o costume.

Eça está sempre na moda (II)

"O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja  desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo."
José Maria de Eça de Queirós
in "As Farpas", Maio de 1871.

Fúria a solo



«Que Haja Festa Não Sei Onde», Manuel Fúria e os Náufragos.

Apesar de se ter notabilizado como vocalista d'Os Golpes, a verdade é que já havia Manuel Fúria antes da banda. Em 2008, no arranque da editora Amor Fúria da qual era co-fundador, lançou o EP «As Aventuras do Homem-Arranha». Suspensa a aventura da banda de Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco, Manuel Fúria volta a solo, embora acompanhado por uma excelente banda de suporte. Trocando o rock de garagem com sabor a folclore d'Os Golpes por um folk com tonalidades rock, Fúria trilha aqui caminhos que acabam por remeter para uns Ra Ra Riot ou Arcade Fire à portuguesa. A atmosfera sonora é suportada por uma variedade de instrumentos a cargo dos Náufragos, dos quais se destacam elementos com provas dadas em outras bandas, como Pedro Galvão Lucas na bateria (Os Velhos), Silas Ferreira nas teclas e no clarinete (Os Pontos Negros) ou Tomás Wallenstein no violino (Capitão Fausto). O disco chama-se Manuel Fúria Contempla Os Lírios do Campo, tem lançamento previsto para o próximo dia 28 de Janeiro e promete uma série de participações especiais. Entretanto, Manuel Fúria está confirmado no cartaz do Vodafone Mexefest, a realizar nos próximos dias 7 e 8 de Dezembro em Lisboa.